Pessoas queridas do meu pulmão, não é exatamente da nossa laia o hábito de publicar nesse espaço, textos que não sejam de nossa autoria. Mas, ora ou outra, surge algumas pérolas que dizem exatamente o que queremos dizer e no estilo que sempre escrevemos. Ou seja, nos copiam descaradamente.
O último plagiador sem vergonha foi o ótimo Antônio Prata que, numa crônica publicada ontem na FOLHA, sintetizou muito bem por onde anda o nosso preconceito nestes novos tempos de mudanças sociais no país. O Prata vem se destacando ultimamente como um dos maiores cronistas da nova geração, quase tão bom quanto o Tadeu., o Vinícius e o Glauco.
Deliciem-se e, se possível, olhem na cara do seu preconceito...
Deliciem-se e, se possível, olhem na cara do seu preconceito...
O AEROPORTO TÁ PARECENDO RODOVIÁRIA
O funcionário do supermercado empacota minhas compras. A freguesa se aproxima com sua cesta e pergunta: "Oi, rapazinho, onde fica a farinha de mandioca?". "Ali, senhora, corredor 3." "Obrigada." "Disponha."
A cena seria trivial, não fosse um pequeno detalhe: o "rapazinho" já passava dos quarenta. Teria a mulher uma particularíssima disfunção neurológica, chamada, digamos etariofasia aguda? Mostra-se a ela uma imagem do Papai Noel e outra do Neymar, pergunta-se: "Quem é o mais velho?", ela hesita, seu indicador vai e vem entre as duas fotos, como um limpador de para-brisa e... Não consegue responder. Infelizmente, não me parece que a mulher sofresse de uma doença rara. Pelo contrário.
A infantilização dos pobres e outros grupos socialmente desvalorizados é recurso antigo, que funciona naturalizando a inferioridade de quem está por baixo e, de quebra, ainda atenua a culpa de quem tá por cima.Afinal, se fulano é apenas um "rapazinho", faz sentido que ele nos sirva, nos obedeça e, em última instância, submeta-se à tutela de seus senhores, de suas senhoras.
Nos EUA, até a metade do século passado, os brancos chamavam os negros de "boys". Em resposta, surgiu o "man", com o qual os negros passaram a tratar-se uns aos outros, para afirmarem sua integridade. No Brasil, na segunda década do século XXI, o expediente persiste.
Faz sentido. Em primeiro lugar, porque persiste a desigualdade, mas também porque todo recurso que escamoteie os conflitos encontra por aqui solo fértil; combina com nosso sonso ufanismo: neste país, todo mundo se ama, não?
Pensando nisso, enquanto pagava minhas compras, já começando a ficar com raiva da mulher, imaginei como chamaria o funcionário do supermercado, se estivesse no lugar dela. Então, me vi dizendo: "Ei, "amigo", você sabe onde fica a farinha de mandioca?", e percebi que, pela via oposta, havia caído na mesma arapuca. Em vez de reafirmar a diferença, reduzindo-o ao status de criança, tentaria anulá-la, promovendo-o ao patamar da amizade. Mas, como nunca havíamos nos visto antes, a máscara cairia, revelando o que eu tentava ocultar: a distância entre quem empurra o carrinho e quem empacota as compras.
"Rapazinho" e "amigo" -ou "chefe", "meu rei", "brother", "queridão"- são dois lados da mesma moeda: a incapacidade de ver, naquele que me serve, um cidadão, um igual. Não é de se admirar que, nesta sociedade ainda marcada pela mentalidade escravocrata, haja uma onda de preconceito com o alargamento da classe C, que tornou-se explícito nas manifestações de ódio aos nordestinos, via Twitter e Facebook, no fim do ano passado.
Mas o bordão que melhor exemplifica o susto e o desprezo da classe A pelos pobres, ou ex-pobres que agora têm dinheiro para frequentar certos ambientes antes fechados a eles, é: "Credo, esse aeroporto tá parecendo uma rodoviária!". De tão repetido, tem tudo para se tornar o "Você sabe com quem está falando?!" do início do século XXI. Se o Brasil continuar crescendo e distribuindo renda, os rapazinhos, que horror!, ganharão cada vez mais espaço e a coisa só deve piorar. É preocupante. Nesse ritmo, num futuro próximo, quem é que vai empacotar nossas compras?
A cena seria trivial, não fosse um pequeno detalhe: o "rapazinho" já passava dos quarenta. Teria a mulher uma particularíssima disfunção neurológica, chamada, digamos etariofasia aguda? Mostra-se a ela uma imagem do Papai Noel e outra do Neymar, pergunta-se: "Quem é o mais velho?", ela hesita, seu indicador vai e vem entre as duas fotos, como um limpador de para-brisa e... Não consegue responder. Infelizmente, não me parece que a mulher sofresse de uma doença rara. Pelo contrário.
A infantilização dos pobres e outros grupos socialmente desvalorizados é recurso antigo, que funciona naturalizando a inferioridade de quem está por baixo e, de quebra, ainda atenua a culpa de quem tá por cima.Afinal, se fulano é apenas um "rapazinho", faz sentido que ele nos sirva, nos obedeça e, em última instância, submeta-se à tutela de seus senhores, de suas senhoras.
Nos EUA, até a metade do século passado, os brancos chamavam os negros de "boys". Em resposta, surgiu o "man", com o qual os negros passaram a tratar-se uns aos outros, para afirmarem sua integridade. No Brasil, na segunda década do século XXI, o expediente persiste.
Faz sentido. Em primeiro lugar, porque persiste a desigualdade, mas também porque todo recurso que escamoteie os conflitos encontra por aqui solo fértil; combina com nosso sonso ufanismo: neste país, todo mundo se ama, não?
Pensando nisso, enquanto pagava minhas compras, já começando a ficar com raiva da mulher, imaginei como chamaria o funcionário do supermercado, se estivesse no lugar dela. Então, me vi dizendo: "Ei, "amigo", você sabe onde fica a farinha de mandioca?", e percebi que, pela via oposta, havia caído na mesma arapuca. Em vez de reafirmar a diferença, reduzindo-o ao status de criança, tentaria anulá-la, promovendo-o ao patamar da amizade. Mas, como nunca havíamos nos visto antes, a máscara cairia, revelando o que eu tentava ocultar: a distância entre quem empurra o carrinho e quem empacota as compras.
"Rapazinho" e "amigo" -ou "chefe", "meu rei", "brother", "queridão"- são dois lados da mesma moeda: a incapacidade de ver, naquele que me serve, um cidadão, um igual. Não é de se admirar que, nesta sociedade ainda marcada pela mentalidade escravocrata, haja uma onda de preconceito com o alargamento da classe C, que tornou-se explícito nas manifestações de ódio aos nordestinos, via Twitter e Facebook, no fim do ano passado.
Mas o bordão que melhor exemplifica o susto e o desprezo da classe A pelos pobres, ou ex-pobres que agora têm dinheiro para frequentar certos ambientes antes fechados a eles, é: "Credo, esse aeroporto tá parecendo uma rodoviária!". De tão repetido, tem tudo para se tornar o "Você sabe com quem está falando?!" do início do século XXI. Se o Brasil continuar crescendo e distribuindo renda, os rapazinhos, que horror!, ganharão cada vez mais espaço e a coisa só deve piorar. É preocupante. Nesse ritmo, num futuro próximo, quem é que vai empacotar nossas compras?